Do Alto Rio Negro ao Ártico: Travessias Indígenas por Justiça Hídrica e Epistêmica From the Upper Rio Negro to the Arctic: Indigenous Crossings for Water and Epistemic Justice

By: Amanda Teles

Do Alto Rio Negro ao Ártico (Portughese version)

Travessias Indígenas por Justiça Hídrica e Epistêmica

por Amanda Teles – pesquisadora indígena Arapaço, mestranda em Direito pela UFAM e coordenadora-geral do IDGlobal

De janeiro a junho de 2025, atravessei uma das experiências mais transformadoras da minha trajetória acadêmica e política: um intercâmbio na Universidade Ártica da Noruega (UiT), no âmbito do projeto EcoCare. Como mulher indígena do povo Arapaço, nascida às margens dos rios amazônicos e hoje dedicada à defesa do direito à água como bem comum, essa travessia representou um mergulho na construção de pontes entre mundos.

O EcoCare propõe uma reinterpretação dos direitos à água a partir de três pilares: empatia, compaixão e cuidado. Esses valores, que já habitam os modos de vida de muitos povos indígenas, foram tratados aqui como fundamentos de justiça ambiental e metodologias de pesquisa. Ao longo de cinco meses de vivência, aulas, rodas de diálogo e práticas colaborativas, compreendi como esses princípios podem guiar políticas públicas, epistemologias, currículos e relações internacionais.

Ao longo de três disciplinas – Indigenous Peoples: Politics, Institutions and Tools, International Environmental Law and Climate Change in the Arctic e Pathways to a Healthier Planet: New Approaches Through Creativity and Experiential Learning – pude integrar saberes jurídicos, climáticos e metodológicos com vivências concretas de justiça epistêmica. O curso que tratou dos direitos indígenas no contexto nórdico permitiu compreender com mais profundidade o funcionamento do Parlamento Sami, o papel das consultas e os instrumentos de representação institucional que viabilizam, ainda que com limites, formas de autodeterminação.

Essas discussões dialogam diretamente com a hipótese que oriento na pesquisa: a de que o Novo Constitucionalismo Latino-Americano, ao reconhecer os sistemas jurídicos indígenas e a natureza como sujeito de direitos, abre caminhos possíveis para repensar o direito à água como bem comum nos territórios originários.

No curso sobre direito ambiental no Ártico, as discussões sobre colapso climático, derretimento das calotas polares e impactos territoriais nos modos de vida tradicionais trouxeram perspectivas relevantes para a compreensão da crise hídrica na Amazônia. A disciplina evidenciou a necessidade de uma abordagem sistêmica e interdependente das ameaças ambientais, incorporando a vulnerabilidade dos povos indígenas como eixo central.

Por fim, Pathways to a Healthier Planet ofereceu um espaço criativo e transdisciplinar que me permitiu aplicar os fundamentos do meu projeto em uma proposta prática: a criação de uma plataforma digital (no TikTok) para disseminar fóruns comunitários sobre o direito à água. A iniciativa foi inspirada pelas metodologias participativas.

Além da formação acadêmica, a vivência na Noruega gerou impactos significativos. Participei de seminários, oficinas e encontros interculturais, estabeleci redes com professores e lideranças Sami, recebi visitantes em minha casa, e pude construir alianças políticas e afetivas que seguem reverberando. A experiência foi também uma travessia simbólica: sair do Alto Rio Negro para estudar no Círculo Polar me ensinou que as águas que nos cercam — sejam rios ou geleiras — carregam histórias de resistência e cuidado.

Um dos aspectos mais desafiadores foi a questão do idioma. Por ser um programa internacional, todas as atividades eram conduzidas em inglês. Esse fator evidenciou uma dimensão importante da chamada internacionalização crítica: não basta abrir portas para pesquisadores indígenas — é necessário garantir que possam atravessá-las com dignidade e suporte. Desenvolver fluência em inglês durante o intercâmbio exigiu esforço diário e comprometimento. Mas, mais do que isso, evidenciou que fluência linguística não é o único critério de excelência acadêmica. A consistência da pesquisa, a profundidade dos vínculos comunitários e o compromisso político com as causas defendidas também precisam ser reconhecidos como méritos legítimos.

Esse intercâmbio reafirmou a importância de ocupar espaços com coerência, compromisso e visão coletiva. Mais do que um avanço pessoal, foi uma afirmação de que os povos indígenas não são objetos da ciência, mas sujeitos capazes de produzir conhecimento, crítica e transformação. A internacionalização da pesquisa precisa ser um instrumento de justiça epistêmica — e não um privilégio restrito a quem sempre teve acesso.

Volto à Amazônia com novos aprendizados, mas também com a mesma firmeza: nosso lugar é onde estão as decisões que moldam o futuro do planeta. E ele não será decidido sem nós.

English Version

From the Upper Rio Negro to the Arctic

Indigenous Crossings for Water and Epistemic Justice
by Amanda Teles – Arapaço Indigenous researcher, Master's student in Law at UFAM, and General Coordinator of IDGlobal

From January to June 2025, I experienced one of the most transformative chapters of my academic and political journey: a research exchange at the Arctic University of Norway (UiT), as part of the EcoCare Project. As an Indigenous woman from the Arapaço people, born on the banks of Amazonian rivers and now dedicated to defending the right to water as a common good, this journey was a deep dive into building bridges between worlds.

EcoCare invites us to rethink water rights through three guiding principles: empathy, compassion, and care. These values, long rooted in many Indigenous ways of life, were explored here as foundations for environmental justice and research methodologies. Over five months of immersive experiences, classes, dialogue circles, and collaborative practices, I witnessed how these principles can shape public policy, knowledge systems, educational approaches, and international relations.

Through three core courses — Indigenous Peoples: Politics, Institutions and Tools, International Environmental Law and Climate Change in the Arctic, and Pathways to a Healthier Planet: New Approaches Through Creativity and Experiential Learning — I was able to connect legal, climate, and methodological knowledge with hands-on experiences in epistemic justice. The course on Indigenous rights in the Nordic context allowed me to understand the workings of the Sámi Parliament, the role of consultation, and the institutional tools that, despite their limits, make forms of self-determination possible.

These discussions spoke directly to the central hypothesis of my research: that Latin American New Constitutionalism, by recognizing Indigenous legal systems and nature as a subject of rights, offers meaningful pathways to reframe the right to water as a common good in Indigenous territories.

In the course on environmental law in the Arctic, we explored the climate collapse, polar ice melt, and territorial impacts on traditional ways of life — all of which offered valuable insights into the water crisis in the Amazon. The course highlighted the need for a systemic, interdependent approach to environmental threats, placing Indigenous vulnerability at the center.

Finally, Pathways to a Healthier Planet provided a creative, transdisciplinary space in which I could apply my research foundations in a practical proposal: a digital platform (via TikTok) to promote community forums on the right to water. This initiative was inspired by participatory methodologies and intercultural knowledge-sharing practices.

Beyond academic learning, the experience in Norway had deep impacts. I took part in seminars, workshops, and intercultural meetings, built networks with professors and Sámi leaders, welcomed guests into my home, and created lasting political and emotional bonds. Symbolically, it was a powerful crossing: leaving the Upper Rio Negro to study in the Arctic Circle taught me that the waters surrounding us — whether rivers or glaciers — carry stories of resistance and care.

One of the most demanding aspects was the language. As an international program, all activities were conducted in English. This revealed an important dimension of what we call critical internationalization: it is not enough to open doors to Indigenous researchers — we must ensure they can walk through those doors with dignity and support. Gaining fluency in English required daily commitment and effort. More importantly, it made clear that linguistic fluency is not the only marker of academic excellence. The consistency of one’s research, the depth of community ties, and political engagement must also be recognized as legitimate forms of merit.

This exchange reaffirmed the importance of occupying academic spaces with coherence, commitment, and a collective vision. More than a personal achievement, it was a statement: Indigenous peoples are not objects of study — we are producers of knowledge, critical thought, and transformation. The internationalization of research must become a tool for epistemic justice — not a privilege reserved for those who have always had access.

I return to the Amazon with new insights, but with the same clarity: our place is at the table where the future of the planet is being shaped. And that future will not be decided without us.

***

This post can be cited as